Saber viver é vender a alma ao diabo



Gosto dos que não sabem viver,
dos que se esquecem de comer a sopa
(«Allez-vus bientôt manger votre soupe,
s… b… de marchand de nuages ?»)
e embarcam na primeira nuvem
para um reino sem pressa e sem dever.


Gosto dos que sonham enquanto o leite sobe,
transborda e escorre, já rio no chão,
e gosto de quem lhes segue o sonho
e lhes margina o rio com árvores de papel.

Gosto de Ofélia ao saber da corrente.

Contigo é que me entendo,
piqueno que te matas por amor
a cada novo e infeliz amor
e um dia morres mesmo
em «grande parva, que ele há tanto homem!»

Gosto do Napoleão-dos-Manicómios,
da Julieta-das-Trapeiras,
do Tenório-dos-Bairros

que passa fomeca mas não perde proa e parlapié...
Passarinheiros, também gosto de vocês!
Será isso viver, vender canários
que mais parecem sabonetes de limão,
vender fuliginosos passarocos implumes?
Não é viver.
É arte, lazeira, briol, poesia pura!
Não faço (quem é parvo?) a apologia do mendigo;
não me bandeio (que eu já vi esse filme...)
com gerações perdidas.


Mas senta aqui, mendigo:

vamos fazer um esparguete dos teus atacadores
e comê-lo como pessoas educadas,
que não levantam o esparguete acima da cabeça
nem o chupam como você, seu irrecuperável!

E tu, derradeira geração perdida,
confia-me os teus sonhos de pureza
e cai de borco, que eu chamo-te ao meio-dia...

Por que não põem cifrões em vez de cruzes
nos túmulos desses rapazes desembarcados p’ra morrer?

Gosto deles assim, tão sem futuro,
enquanto se anunciam boas perspectivas
para o franco frrrrançais
e os politichiens si habiles, si rusés,
evitam mesmo a tempo a cornada fatal!

Les portugueux...
não pensam noutra coisa
senão no arame, nos carcanhóis, na estilha,
nos pintores, nas aflitas,
no tojé, na grana, no tempero,
nos marcolinos, nas fanfas, no balúrdio e

...sont toujours gueux,
mas gosto deles só porque não querem
apanhar as nozes...


Dize tu: - Já começou, porém, a racionalização do trabalho.
Direi eu: - Todavia o manguito será por muito tempo
O mais econômico dos gestos!

Alexandre O´Neill
Alexandre O´Neill
Poesias Completas
1951/1981
Biblioteca de Autores Portugueses
Imprensa Nacional Casa da Moeda


Espero ter tempo pra o bloguinho, mas se sumir já sabem o motivo. Vejam o presentinho que ganhei! Cliquem aqui!!

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