Os binóculos não tinham sido inventados e, apesar de próximas, separadas por um rio, as duas tribos se ignoravam. Seus limites eram os limites do mundo. Uma, previlegiada por imenso pomar natural, vivia de mangas, laranjas, mamão e abacates. A outra se alimentava de cenouras, nabos, rabanetes e mandioca. Estavam tão separadas, naqueles idos, quanto hoje os habitantes da terrra e supostos alienígenas de Andrômeda.
Certo dia, numa daquelas tempestades terríveis, um raio derrubou a grossa árvore postada bem na margem onde o rio era mais estreito, formando uma ponte natural. Um daqueles menininhos de dois ou três anos, desgrudando-se da mãe, atravessou para o lado oposto. Levava uma penca de mangas pela mão. Por coincidência, encontrou outro menininho da mesma idade, também desgarrado, com um monte de cenouras. Não demorou mais de um minuto para que, sentados na mesma pedra, dividissem a refeição. O das cenouras extasiou-se com as mangas. A recíproca foi verdadeira.
Logo os adultos, seguiram as crianças e, milagres dos milagres, aqueles nossos ancestrais passaram não apenas a comer melhor, mas inventaram a palavra mágica: começaram a gritar "Globalização, globalização"...
Um corte nesta história nos leva a 1453, quando os turcos tomaram Constantinopla. Em poucas semanas interrompeu-se o fluxo das bissextas caravanas que, saindo da Europa, às vezes conseguiam chegar à Índia, Mongólia e até a China. Quem se aventurasse era passado pela espada otomana, até os camelos, e os europeus não tiveram outro remédio senão lançar-se ao mar. Descobriram o caminho das Índias, as caravelas chegaram ao extremo oriente. A mesma palavra mágica ecoou nas gargantas dos heróicos navegadores e dos misteriosos potentados de pele escura ou amarela: "Globalização, globalização".
Assim como para os trogloditas o mundo se tinha tornado outro, maravilhoso, definitivo, pronto e arrumado, porque podiam trocar mangas por cenouras, da mesma forma o comércio com especiarias, de um lado, e madeira, de outro, acabava de alterar costumes, cultura, modo de viver e de pensar. Nada mais haveria de novo, a Humanidade chegara aos píncaros de sua existência, era preciso reformular definitivas teorias políticas, econômicas e filosóficas em condições de exprimir a síntese final. Quem não as aceitasse podia escolher entre ser chamado de retrógrado ou ir para a fogueira.
Pois é. Tanta pressunção de nossos ancestrais se desfazia séculos a séculos, mas não adiantava. Para os donos do poder de cada momento não haveria mais nada para aventurar, descobrir, inventar e até pensar. A civilização estava concluída através da mesma palavra mágica: "Globalização, globalização".
Hoje, os netos daquela gente precipitada andam festejando outra vez porque a Alemanha fabrica motores, a Argentina, bancos de couro, a Coréia, baterias, e a Malásia, pneus, para que, com o aço fabricado no Brasil, os operários mexicanos possam montar automóveis que os japoneses vão copiar e os americanos, comprar.
Acabou a história, pela milésima vez. Não há mais o que imaginar, discordar ou questionar. Está o mundo completado, definido, arrumado. Por conta desse novo capítulo fluem as novas e agora definitivas teorias diante das quais a ninguém é dado duvidas, todas demonstrando que será assim até o fim dos tempos. Outra vez engessa-se o pensamento, obrigando a aceitar como realidade eterna a supremacia do mercado, a livre competição entre quantidades desiguais, as privatizações desmedidas, o enfraquecimento do Estado e, em contrapartida, a prevalência do mais forte sobre o mais fraco, o desemprego estrutural e inevitável, a transformação do assalariado em peça descartável, a divisão das sociedades entre a minoria rica e previlegiada e a maioria pobre e submissa. Se quiserem, até, a supressão das nações diante das empresas multinacionais. Nada existirá depois desse modelo da globalização.
Tolos ou velhacos? Quem garante que daqui a cinqüenta anos não estaremos trazendo minerais nobres de Marte, água de Vênus ou gás de Júpiter? E se em quinhentos ou mil anos pudermos importar cérebros da Ursa Maior, ou o plasma vida eterna, da Constelação de Sagitário?
De toda essa paranóia, apenas uma conclusão: parem de enganar os trouxas e de estabelecer dogmas. Até porque, as eleições estão em reta final. E se não for no ano que vem, será nos próximos, a demonstração de que a vida não se reduz à troca de mangas por cenouras.
Carlos Chagas é apresentador do programa
Jogo do Poder da CNT, escreve uma coluna publicada em 12 jornais, comenta e critica a forma como a imprensa brasileira vem atuando. No cenário político defende o fim das medidas provisórias, a fim de que o poder legislativo possa cumprir suas funções constitucionais.
Quero homenagear esse jornalista que no dia 02 de Outubro completou 50 anos de profissão e nada mais justo trazer à tona um texto escrito em Agosto de 1997 que não esteja publicado na mídia, reconhecendo o pioneirismo de um ícone do jornalismo e de credibilidade pública.
Agradeço o colega blogueiro
Herbert Drummond por ter me lembrado da data. Fica o conselho do mestre:
"O jornalista não é melhor nem pior do que o escritor, mas precisa de conhecimento ordenado e sistematizado, que só adquire na faculdade. Antes, aprendíamos apenas pela experiência, a prática. Só quem sabe história, filosofia, economia, geografia, pode ser um bom jornalista. Bem como precisa conhecer a parte técnica: editar, diagramar, apresentar, aprende-se com muito mais facilidade e eficiência nos bancos universitários" [
em entrevista]
Pelo jeito muitos jornalistas precisam comer muita mangas, laranjas, mamão, abacates, cenouras, nabos, rabanetes, mandioca...
[update] Mesmo como nota póstuma a publicação do texto, dizendo ser o mesmo obra de ficção; lamentavelmente, qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência, porque assédio e violência sexual são crimes freqüentes no Brasil e como tais não deve ser incentivado a prática. Deixo aqui registrado o meu repúdio e como tais, devem ser repelidos, denunciados, combatidos e debatidos. Como Goldman escreve, “Só me permito lembrar – lavando panos sujos assim tão publicamente – porque o mundo é cheio de Luisas”. Esse escritorzinho não é mais ridículo porque a revista não lhe disponibiliza mais espaço. Um escritor 'de ficção' de quinta categoria.