O mundo de cabeça para baixo

Lembro que quando estava na escola, um professor de geografia, girava o globo e dizia: "prestem atenção que vocês no futuro não visualizarão os mapas, eles serão extintos". 

Era muito confuso compreender essa fala, porque para não existirem mais os mapas, seria porque não existiriam mais os territórios? Não. Talvez porque não existiriam mais engenheiros cartógrafos. Não tenho certeza, mas penso que na atualidade essa profissão está restrita à área militar. 

Não faço ideia também se ainda estudam os mapas nas aulas de geografia, se ensinam sobre limites territoriais, países, etc.. A crítica é quanto aos habitantes de determinado país que não sabem quais países estão na sua fronteira ou se um país mais longínquo, como o Brasil esteja no continente africano e com muitas girafas e elefantes ou outros que dizem que estamos mais ao sul, que a Patagônia nos pertence e que temos como capital federativa: Buenos Aires. Pior que internamente, isso já virou uma piada.

Sempre fui uma aluna aplicada e bastante curiosa quanto aos países, suas capitais, climas e vegetações. Mas sei que muitos pensam que a capital do Estado de Nova Iorque é a cidade de Nova Iorque. Ledo engano. Uma besteira... para quê saber?

Outro exemplo são as cidades que moramos. São poucas as pessoas que sabem nomear quais bairros estão ao norte ou ao sul. Para quê se podemos usar o GPS? 

Os mapas são um fator importante na empatia humana. De nada adianta ouvir notícias de desgraças e tristezas se você não sabe onde estão as desgraças e tristezas em relação a você. Sim, estou sendo irônica. 

Os mais jovens estão tão acostumados a olhar para a tela de seus telefones que só veem aquela parte do mundo, ditos sob medida, por sua localização no Google Maps. 

O Google confia em dados básicos para que você poder ter sua versão eletrônica. Se os dados básicos não estiverem sendo desenvolvidos constantemente, seus dados eletrônicos também ficarão desatualizados. Uma perdição!  

O mapa-múndi é a dita terra plana, mas só no papel. Creia, existem os defensores da terra fatiada, podemos afirmar que foram estudantes abestalhados que tiveram professores que eram proibidos de reprová-los? 

No começo do ano, li uma matéria sobre um homem que estaria lançando uma campanha de "crowdfunding" para enviar apoiadores da terra plana ao espaço. Mark Gold é um escocês irritadíssimo com crenças em fantasias conspiratórias. Eu me diverti imaginando ele apresentando à essas pessoas uma nova terra e um novo universo. 

Isso atualmente, mas no passado um monge do século XV criou um mapa do mundo por "crowdsourcing". Fra Mauro foi o Google Earth de uma década, cinquenta anos antes da descoberta do Brasil. 

Sua obra é de precisão sem precedentes. A imagem é de domínio público. Ampliem para melhor visualização (aqui)

Imagine Veneza em meados do século XV, um monge usando um chapéu largo de smurf, abordando quem ali chegasse depois de uma longa jornada marítima. Numa taverna interrogava essas pessoas sobre suas viagens. Como estava o tempo? Que categoria de gemas preciosas foram extraídas? Que animais você encontrou e quantas cabeças eles tinham? 

Esse monge foi contratado pelo rei Alfonso de Portugal para produzir o mapa-múndi. Os portugueses eram exploradores ávidos e clientes ricos e, antes das imagens de satélite, Veneza era o paraíso dos cartógrafos. 

Comerciantes árabes e exploradores do mundo passavam pelo porto, dando a Fra Mauro uma fonte incomparável de fofocas e grandes contos sobre o mundo. A queda de Constantinopla, ocorrendo alguns anos antes de o mapa ter sido concluído, também teria fornecido uma rica fonte de refugiados bem viajados, presumivelmente dispostos a trocar suas histórias por pão ou cerveja. 

"Crowdsourcing" de um mapa nunca foi tão fácil, e Fra Mauro aproveitou ao máximo. Ele interrogou esses viajantes com uma curiosidade que beirava a beligerância, verificando seus contos na extensa biblioteca de seu mosteiro na lagoa de Veneza. Ele usou suas informações para desenhar o próprio mapa e salpicá-lo com quase 3.000 anotações.

Ao descrever as riquezas, as rotas de navegação e as pessoas ao redor do mundo, Fra Mauro não apenas descreveu o terreno, mas também contribuiu para encorajar mais explorações, levando à famosa Era da Navegação e à descoberta das Américas. 

Se ele estivesse vivo hoje, provavelmente ficaria desapontado ao saber que lagos de ouro e vinho existem apenas na imaginação dos viajantes que ele entrevistou. Ele ficaria, entretanto, feliz em saber que seu mapa está se provando mais preciso do que os cartógrafos céticos acreditavam, e que ainda funciona como um ponto de partida para pesquisas e descobertas.

O título dessa postagem foi dado inspirado nas características frágeis que o mundo sempre se apresentou. Ele está sempre em risco, mas em 1450, o disco de quase dois metros, pintado à mão por Fra Mauro, representou o mundo orientado para o sul, o que significa que o mundo aparece de cabeça para baixo para os espectadores. Demorou cinco anos para ser criado e antes das descobertas holandesas, espanholas e portuguesas no Oceano Índico e, antes das viagens para a América por Cristóvão Colombo - o primeiro do seu tipo a mostrar a África como um continente separado da então grande massa de terra do sul.

Uma das minhas partes favoritas do mapa é uma pequena inscrição bem no topo do mapa que diz "Aqui começa o mar escuro" - Uma imensa imagem cheia de informações e um prenúncio de que o mundo estava prestes a mudar muito rapidamente. Você procura por qualquer país que hoje existe e percebe que não estamos lá - O mundo foi comprimido numa massa esférica. 

 

Cartografia só foi compreendida para os não navegadores anos mais tarde, assim como hoje sabemos que um barco quando se perde no horizonte não caí num abismo.