Contradições

Ela não vê a hora de tudo voltar ao normal, assim como eu, você, Deus e o mundo. Mas voltar para onde mesmo? 

Voltar a estar à vontade com quem se ama, dar aquele abraço gostoso na avó; ir na casa da mãe, nem que seja para ouvir que está magra demais, trabalhando demais, solteira demais. Daí lembra que, em tempos distantes, demorava-se para viajar para vê-las. 

Quanta perda de tempo, principalmente respondendo e-mails noturnos de trabalho. 

Também se lembra de quantas vezes ouviu reclamações de amigos - que chegavam em casa cansados e ainda tinham de colocar o filho para dormir, algo que agora é visto com mais alegria; 

O isolamento que tanto fez para valorizarmos mais as pequenas coisas e que nos deixou mais sensíveis, saudosistas e lembrando atitudes nada ortodoxas, pois quantas vezes antes se pegou, no meio do expediente, acessando aquele site de passagens aéreas, sonhando com uma tequila no Caribe; de quantos almoços teve que trocar por um sanduíche na mesa do trabalho. 

Quantas vezes quis assumir uma identidade secreta e recomeçar tudo de novo num vilarejo no interior do interior do interior de um país distante, onde a vida deveria ser mais simples e descomplicada. Mas revê essa contradição: em qualquer lugar, existem normais e normais. 

Ora, voltar a um tempo que as pessoas não passavam fome (?) e tinham como tirar o próprio sustento, as crianças frequentavam a escola, e se podia caminhar pelas ruas sem paranoia. Daí se pergunta, ué, será que esse tempo sequer existiu? Pois 13,5 milhões de brasileiros viviam antes do coronavírus com 1,90 dólar por dia (hoje são bem mais); milhares de crianças volta e meia tinham que se agachar em suas salas de aula porque um tiroteio começou (crianças que hoje estão entre os 40 milhões de brasileiros sem acesso digital, ou seja, não têm aula remota); e, se ela se distraísse muito, não parava no sinal sem um revólver apontado para a cabeça. 

Onde mesmo ela estava enquanto esse normal se proliferava, descambando para o drama ainda maior desta pandemia? 

Como otimista nata, fico cada vez mais animada com boas notícias - O número de mortos por Covid-19 cai pelo 2º mês seguido - a vacinação avança aos trancos e barrancos, aliado ao fato que as pessoas estão mais conscientes. Independente de governos, a população sabe como cumprir o seu papel. Aquelas pessoas que não sabem - estando próximas de nós - tentamos esclarecer, senão, entregamos para os céus. O que há de se fazer quando é da natureza humana contradizer até sua existência? 

Mas voltando ao meu lugar no mundo... A vida é mesmo uma loucura. O lugar para onde queremos voltar é, muitas vezes, aquele do qual sonhávamos escapar. Tomara que os novos tempos, que todo mundo diz que o futuro nos guarda, não sejam só feitos de máscaras e álcool gel. Mas de verdadeiras revoluções - íntimas e grandiosas - levadas por pessoas que não querem voltar para lugar nenhum, mas apenas seguir em frente.