Tertúlia Virtual - Uma mulher sem limites
Ontem por motivos expostos na postagem anterior, não pude postar a minha participação no Tertúlia Virtual - que completou um ano de reunião entre blogues para falar sobre temas variados. A cada dia 15 de cada mês, os 'animadores' Jorge Pinheiro e Eduardo Lunardeli traziam graça, inteligência e modos de pensar, diferentes para a blogosfera. Porém os idealizadores resolveram colocar um ponto final e nos prometem novas iniciativas. Aguardem!
E quando vi o tweet acima da @albinha, pensei: Taí, dia de Tertúlia, tema Livre, vou falar de Liberdade. Mulher sem limite!
Quem é essa mulher? Superdesinibida, sedutora e intensa! Uma mulher que derrubou os tabus de sua época e amou como ninguém.
Leila Diniz em “Todas As Mulheres do Mundo”, o filme de Domingos Oliveira
Quem é que vai se preocupar com um avião que caiu na Índia? Pois era o que o rádio estava anunciando naquela noite de quarta-feira, 14 de Julho de 1972. Só no dia seguinte, as pessoas saberiam de tudo, pelas manchetes dos jornais. É que dentro dele estava uma mulher, melhor, uma supermulher chamada Leila Diniz. Antes aquilo não passasse de boato ou uma simples questão de homonímia. Aquele nome constando da lista de passageiros não era prova de nada, porque ninguém perdia tanto a hora em todos os embarques, para onde quer que fosse, como ela. Tomara que aquilo não passasse de mais uma obra de ficção (e não do destino) dessas que logo no começo tem o famoso aviso de que, qualquer semelhança terá sido mera coincidência. Acontece que no script estava escrito que a mocinha ia morrer no final da historia, como era de costume na estética da época. Ou seja, sem happy end.
Leila tinha confidenciado a amigas um medo estranho de viajar e morrer. Morrer de saudades da filha pequena, meio ano de vida, tão precisada de tudo ainda. Tanto que lá na Austrália, ponto final da viagem, tinha escrito um cartão postal, assim:
“Tô com muitas saudades. Hoje fui ver os cangurus, as mães e os filhotes. Daqui uns dois anos quero vir pra cá com você. Ver você correndo por um desses parques daqui, toda colorida e coradinha num lugar como este, com muitos bichos e muito oxigênio dos verdes. Já fiz até amizade com um canguru que me seguiu o tempo todo. Volto logo, amor, mais bonita e mais feliz, acho.Não voltou, nem a filha Janaína pode ler, na santa incapacidade dos seus só sete anos de luz. Fora a gestação mais curtida (e discutida) daqueles tempos ainda bem poucos permissivos. Já pensaram, alguém grávida, de biquíni na praia, sem as famosas cortininhas? Tantos anos atrás, biquíni cortininha era bem diferente dos de hoje. Eram biquínis que geralmente as grávidas escondiam as barrigas. Ninguém as mostrava em público.
Beijos da mamãe-canguru.”
Leila foi a primeira a mostrar o ventre livre e fecundado, assumindo com orgulho, amorosamente. Revolucionariamente. Mulher que conjugava o verbo amar como nenhuma outra. Amava a vida sobre todas as coisas, acima de todas as pessoas, sempre adiantada léguas em relação às medidas do pedaço de tempo que lhe foi concedido, 27 anos, para degustar tudo o que tivesse direito e estivesse ao seu alcance. Uma alegria que esmagava qualquer barreira de hipocrisia ao redor. Ela não era contra as convenções, mas exigia o direito de viver como bem entendesse.Uma mulher-solar, uma gargalhada ambulante.
“Estou bacana, está tudo bacana, no meio de tanta bacanice só pode dar tudo certo. Na verdade acho que muitos homens gostariam de ter um filho meu. Estou inteira, absoluta. Tenho um amigo que diz que só mulher grávida não sofre de solidão. Estou plena, tranquilona”Foi plena e tranquilona sempre, não só grávida. Difícil era aceitá-la tal qual era, uma das mais fortes, espontâneas e autenticas figuras cariocas dos anos 60, mais do que dourados. Risonha e franca, aberta, cristalina, sem frescura, de humor imprevisível e absoluta ausência de qualquer tipo de recurso pré-fabricado. Transou numa boa quase tudo, assim na vida quanto no imaginário. Na telona, O Mundo Alegre de Helô, Jogo Perigoso, Marinheiro Vivo ou Morto, Todas as Mulheres do Mundo, Edu Coração de Ouro, A Madona de Cedro, O Homem Nu, Os Paqueras, Coristo Diabo Louro, Azyllo Muito Louco, Mãos Vazias e Amor, Carnaval e Sonho. Na telinha, entre Janetes e Magadans, O Sheik de Agadir, Anastácia a Mulher sem Destino, na ribalta, chanchadeira, Tem Banana na Banda, Vem de Ré que estou de Primeira.
Para o festival de Adelaide, Leila não tinha levado grana, na bagagem a vontade de visitar alguns lugares e depois da Austrália, até os poucos dólares acabarem. A partida, eufórica, foi no dia 06 de Junho, já com dois contratos assinados para a volta, um com Silvio Santos para participar do júri do programa dele (tinha sido jurada do programa de Flávio Cavalcanti) e outro com o produtor Herbert Richers para o filme que se chamaria “Os Homens de Minha Vida”, que um gozador de plantão disse logo tratar-se de uma longuíssima metragem. Ia dar duro para garantir o futuro de Janaina, justificava para os patrulhadores.
Casou, descasou, sempre amiga dos ex-maridos, tinha o dom de se fazer gostada, era mais loira do que morena, engordava, emagrecia, morria de rir sempre e de tudo, debochava de todos (principalmente dela mesma), fazia amigos e influenciava pessoas, determinou comportamentos, pilotava motos em uma época em que mulher mal passava do patinete, destruiu tabus, mudou conceitos, tinha a amizade como atitude preferencial. Superdesinibida. Tinha canários engaiolados em casa e se esbaldou de tanto rir quando um deles, tratado como grande machão das canárias, um dia botou um ovo. Acreditava em tudo, sobretudo no amor (mas que não fosse infinito posto que é chama). Amou tanto que se fez amada, muito. Xingava, bastante, mas era de dar problema a amigo diabético, de tanta doçura que exalava.
Seu lema: Nunca perder a motivação.
Bety Faria dizia que Leila era uma pessoa muito séria, no que Leila concordava lá no fundo! Mas de vez em quando ficava desanimada, com vontade de ir para uma praia bem longe, descalça, sem fazer absolutamente nada, comendo peixe com a mão. Em autodefinição, uma pessoa em pleno processo de aprendizado. Nunca perder a motivação, era o lema dela. Sabia bem que as ilusões não são nada duradouras. E confessadamente, precisava de Janaína, senão ia acabar criando gato, cachorro, papagaio, ou então jogando tudo pra cima dos homens “Janaína é coxudinha, acho até que ela vai ser chacrete quando crescer”.
Ficava com pena de não ser várias pessoas diferentes ao mesmo tempo. Morou muito tempo sozinha “Me dou muito bem comigo mesma”. Amamentou Janaína na coxia, vestida com roupa de cena. Só trabalhava com quem gostava, escolhia pela patota, não pelo texto, pelo autor, pelo papel, pelo diretor. Só lutava pelas coisas pelas quais acreditava “Quando as coisas se gastam, é duro, mas a gente tem que jogar fora”
Achava que o sucesso assustava no começo, mas depois abria o apetite. Receitava:
“Negócio seguinte, no fim tudo dá certo. O homem está aí, a mulher também, então é só encontrar. O problema é manter o encontro, aí que a coisa se complica. Nessa hora a gente tem que cuidar mais, se o cara gosta de um certo sabonete não custa usá-lo, se o cara gosta de doce de leite, porque não fazer pra ele? Só não vale é fazer concessões em tudo.Amiga fidelíssima, o que não era muito no amor, ficou na cabeceira do acidentado ator Amilton Fernandes, que fazia o Albertinho Limonta de “O Direito de Nascer” na velha TV Tupi, até a morte dele. Relações públicas do palavrão “Sem ele não há dialogo, pô!” Um riso permanente contra todas as tristezas, mulher rigorosamente apaixonada pelo ser humano. A própria encarnação de uma cidade ainda maravilhosa, movida a cortesias intermitentes. Ex-professora primária, que sonhava um dia largar tudo e voltar a ensinar crianças
E essas frescuras só valem quando a gente está mesmo a fim de curtir esse amor”
“Já pensei mil vezes em chutar tudo para o alto, mas praquê, para dar satisfação aos puritanos e falsos moralistas? Se eu chegar aos 40 anos com a mesma curiosidade de agora, descobrindo o mundo e as pessoas a cada instante, então poderei dizer que fui realmente feliz. Mas o que interessa é que estou plenamente satisfeita assim como sou e nem planejo meu futuro”.Mas o futuro dela estava planejado. E de uma curta vida de 27 anos, muitíssimo bem curtidos, restou uma placa dourada concedida pelo júri do festival para o qual foi e do qual não voltou. Estava lá no horóscopo dela, nascida sob o signo de Áries no dia 25 de março de 1945, naquele dia 14 de junho de 1972: “Você pode agora fazer projetos e tomar decisões importantes a respeito dos filhos. Mais tarde badale bastante” Estava lá no diário de viagem chamuscado pelas chamas do avião que tinha saído da Ìndia:
“As saudades de Janaína são muitas. Será que estou sendo a mãe que ela merece? A babá tem ficado mais tempo com ela do que eu, desse jeito a babá vira mãe e eu viro babá. Mas estamos chegando a Nova Delhi e já avisaram que a temperatura local é alta. Quente paca, o inferno, quase. Só que agora está acontecendo alguma coisa es...”A coisa es...aconteceu. E só pela arcada dentária foi possível identificar os restos de Leila. A urna lacrada chegou ao Rio num domingo de muito sol, a praia cheia de gente em frente à rua Montenegro, hoje Vinícius de Morais, onde ela estava sempre, em outras manhãs, irradiando uma incrível e incurável mania de viver, inventando a liberação e libertação da mulher bem antes das Betty Friedans, Janes Fondas e todas as libs posteriores. E a dela, saibam todas as pós-Leilas de hoje, era uma liberação autentica, uma libertação orgânica, nada filosofal, zero conceitual. Leila foi muito mais que uma simples pioneira.
“Já perdi o medo de ficar velha”
Naquele tempo as mocinhas e moçoilas debatiam com elas mesmas suas virgindades, as do corpo e as da alma. O fiel depositário das confissões mais inconfessáveis não era o padre nem a amiga intima, era o diário. E, no diário de Leila, com data de 19 de setembro de 1969, estava escrito isto:
“Um troço que tinha e que perdi era o medo de ficar velha. Achava que ia perder a minha alegria, vitalidade, energia, enfim, o prazer de viver, que é a minha força maior. O oposto assim aos meus 17 anos, quando eu era um vendaval. Eu esporrava para todos os lados. Pois agora estou encarando o vento e é muito melhor. Acho até que aos 30 anos vou estar bem bacana e, aos 120, vou saber tudo e ter ainda o que aprender. Pena é que ninguém tenha coragem de mim, dá pra entender? Esse é um risco que corro, sei que me arrisco a ficar sozinha, num isolamento maior e absoluto, mas eu pago pra ver. É necessidade, não é atitude. Não vou deixar de procurar em mim minhas verdades e deixar de ser como sou. Fiz essa opção de vida e acho que ela vale as conseqüências. Não vou me acomodar às coisas bonitinhas e limpas, às situações protetoras, que são limitadoras e podadoras. Prefiro ficar no meio da briga, somando, subtraindo, dividindo, multiplicando, tanto faz, me interessa é o saldo que fica dentro de mim, minha base, meu alimento, meu estofo, é disso que eu vivo. E não me importa o fim, aonde vou chegar. O caminho é que é importante. Eu quero é ir”.Ah, se todas as mulheres do mundo fossem iguais a Leila Diniz, que maravilha viver!
*Quero agradecer a minha mãe, por ter me fornecido dados para esta postagem.
Beijus,
Olá, adorei o texto.
ResponderExcluirEu tinha apenas 3 anos qdo Leila morreu, mas minha mae conta muito sobre ela.
Acho que existe mulheres muito parecidas com Leila, porém nao são a maioria. Infelizmente...
Existe mulheres ainda submissas, mulheres tristes e medrosas...
Mas vamos glorificar as mulheres "leilianas" !!
Bjks !!
Luma:
ResponderExcluirPois é, cada um tem dentro de si, um modelo a seguir.
Admirei muito a Leila Diniz com a coragem que ela teve para fazer a diferença.
Parabéns pelo texto.
Beijos.
Anny
Lumma,
ResponderExcluirDevorei esse texto. Olha, o Eurico do Eu-lirico (http://euliricoeu.blogspot.com/) escreveu um poema fantástico sobre Leila Diniz. Coisa de poeta de verdade. Vou postar o link aqui tá?
http://euliricoeu.blogspot.com/2009/06/poema-espelhado-um-tributo-tardio-leila.html
Eu achei fantástico. Espero que gostes.
Inté!
Que maravilha de texto sobre a Leila, só vc mesma Luma para escrever dessa forma poética o relato de uma vida única, como todas são, mas tão distinta e especial.
ResponderExcluirUm cheiro grande e bom fim de semana!
Que saudades da Leila Diniz,que sempre fez parte dos meus sonhos efervecentes da minha adolecencia,parabens pelo texto.
ResponderExcluirPS só corrige o nome do "animador" de Fernado para Eduardo.
bjs
Nossa esse texto me fez retomar minha juventude. Adora Leila ela era minha ídala. Quando de sua foto grávida todas nós jovens da época ficamos estarecidas com sua coragem.
ResponderExcluirConcordo com seu útimo parágrafo
"Ah se todas as mulheres do mundo fossem iguais a Leila, o mundo seria bem melhor"
Luma, final de semana passado fui comemorar meus 34 anos de vida matrimonial. Fomos para o Sul de Minas, em Santo Antonio do Pinhal, ficamos em pousada linda por lá e depois fomos para Ipuiuna sem deixar de ir comer um delicioso pastel de Pouso Alegre. Me lembrei de você e sua mamãe, gostaria de saber como ela está.
Desculpa estar em falta de por aqui vir, mas é que depois do meu tratamento fiquei mais lerdinha ainda, tudo o que faço tem ser devagar e pra completar peguei uma baita virose nessa semana. Tá difícil de entrar no eixo e retomar minha vida como antes. Mas tudo o que importa é que estou caminhando bem.
Espero que você tenha um lindo e maravilhoso final de semana. Cheio de luz e muita paz.