Imagem Sophie Thovenin
- Silêncio na sala! Está iniciado este julgamento! Senhor Anjo da Guarda tem a palavra.
- Excelentíssimo, Altíssimo e Omnipotente Deus Todo Poderoso...
- Chega de enrolação! Prossiga com os fatos.
- Hum hum, perdão, perdão. A minha protegida hoje aqui presente nesta audiência teve os seus pecadilhos ao longo da vida, sim Senhor. No entanto foi sempre uma boa cristã, generosa, amiga de crianças, velhinhos e animais. Foi sempre amiga do seu amigo, e muitas vezes conseguiu mesmo não ser inimiga do seu inimigo. Discreta e decente, uma moça que deve com certeza ascender aos céus.
- Hum... Diabo de acusação, faça-me um breve resumo. Pode deixar de fora as coisas menores, como dizer palavrões ou roubar seu colega de berço, porque com o último julgado estive aqui por três meses por conta disso.
- Assim sendo, e já que me corta o discurso de forma tão vil...
- Não sejas melodramático, eu sou Deus, não posso ser vil.
- Tens razão, sim Senhor. Era para ver se passava. Bom, mas em traços gerais, e cingindo-me aos 7 pecados mortais, que só aí temos motivos mais que suficientes para a condenação eterna no fogo dos infernos...
- Olha o melodrama!
- Desculpa... mas sabes que nestas coisas eu me entusiasmo. Enfim, sendo sistemático:
IRA – 3457 fúrias graves contra o irmão e mais de 5000 dirigidas à irmã.
INVEJA – 345 olhares mortíferos para mulheres esplendorosas e mais de um milhão para outras com malas e sapatos exclusivos.
SOBERBA – 253 vezes que andou de nariz empinado por não dar o braço a torcer diante de uma discussão. E nem vou abordar as vezes que fincou o pé.
AVAREZA – 8953 dias passados a contar os tostões da conta bancária, consoante a idade em que se deu o delito. Quantidade de vezes que deu esmola bem inferior à média de um cristão comum.
GULA – Se quiser uma demonstração prática tenho lá fora uma fatia de salame de chocolate.
- Não é preciso, eu consigo imaginar. Além disso também já estou com uma fome diabólica. O almoço já vai há muito tempo. Prossegue.
- PREGUIÇA – tenho aqui um dossiê com informação detalhada de todas as ocorrências de preguicite aguda, com mais de 2 milhões de páginas...
- Poupa-nos a leitura. Eu sou Deus, sei tudo o que está lá escrito.
- Finalmente, e pior de todos, temos a LUXÚRIA. Quer a descrição completa das fantasias da nossa julgada?
- Não vale a pena. Mesmo sendo Deus consegui corar quando li o processo. Bem, assim sendo, e como este é um caso bicudo, vou fazer uma pausa para deliberar. Até lá a julgada fica retida no Purgatório. Reunimos de novo daqui a um século.
- Menos mal! Pensei que a Luxúria lhe valesse uma condenação imediata! A propósito... irá me ensinar aquela do...
- ANJO!!!
- Oh! Excelentíssimo e Om...nipotente Deus Todo Poderoso... tens ouvidos de tísico meu Altíssimo...
No purgatório por meio século... só porque tinha sido humana demais? Talvez depois desse tempo conseguisse enxergar com clareza os seus erros. E se tivesse acreditado em outro palestrante, não estaria ali! Teria morrido e vivido um monte de vezes. Mas será que era necessário morrer para viver tantas vezes, ou seria o contrário, viver para morrer tantas vezes? Morri-se um pouquinho a cada dia, já ouvira dizer. Ainda não sabia, só iria tomar consciência dos ciclos da vida depois de passado alguns longos anos.
Mas com certeza que com os filhos compensaria os erros cometidos pela falta, ou foram pelos excessos? Já não tinha certeza de nada! A essa altura da morte ter que pensar no que pudesse ter feito de certo e de errado em vida. Que descanse em paz! Não existe mais? Teria que fazer diferente dos humanos, agora morta era coitadinha (Olha lá embaixo tanta gente chorando...).
Ah, os filhos! Porque deixou que ficassem influenciados por frivolidades? Tanta educação torta! Divertir-se para quê? O fim sempre seria aquele! Como fazer agora para explicar aos filhos que, apesar do que dizia a Disney, Hércules não era filho de Zeus e de Hera, mas de Zeus e Alcmena; que Zeus de fato enganou a mulher e a própria Alcmena, assumindo a forma de Anfitrião; que Alcmena e Anfitrião não eram o casal de velhotes que encontrou e adotou Hércules quando ele caiu do céu; que foi Hera, e não Hades, quem enviou as serpentes a Hércules; que Hades, retratado no filme como uma espécie de demônio dos infernos, não era propriamente um ente maligno, e que, sobretudo, não era inimigo de Zeus; Que Hércules era ruim e teria matado a mulher e os filhos.
Se vivesse novamente, aproveitaria o tempo com coisas simples, descomplicaria a vida, diria somente a verdade, sem fantasias, sem rodeiros, sem informações erradas, sem superficialidades. Assim como fizera seus pais e que não lhe deixaram passar por crise nenhuma até chegar nesse purgatório. Mas pouparia seus descendentes.
Agora estava ali a fazer exames de consciência. Porque o seu mundo só poderia ser visto com os olhos dos outros? Estaria entrando em crise? agora! Existe crise aos 20, 30, 40, 50 anos? ou passamos por crises diárias?
Responda, se for capaz!!
Ah,
Mandela!! Deus guarde os iluminados.