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Histórias de Bambas


Às vezes acontece...

"Talvez ainda exista e hoje tenha outro nome. Mas, naquela época, eu bem me lembro, era Café do Compadre mesmo. Duas portas davam para a velha Rua do Estácio. Do lado da Rua Pereira Franco, ficavam as outras três. As mesas eram de mármore, daquelas que hoje já não existem. Ao fundo, sobre um palanque, uma enorme vitrola "ortofônica" e, colocada acima da vitrola, uma imagem de São Jorge.
Era assim o Café do Compadre, naquele tempo em que a minha presença no recinto significava nada. Mas eu gostava de me postar diante de duas portas, quase todas as tardes, porque ali se reuniam meus ídolos - e eram tantos e tão imensos! Parece que ainda estão, sentados naquela mesa que ficava bem defronte à Rua do Estácio, Ismael Silva, no seu irrepreensível terno azul-marinho, com a sua camisa de seda lavável imaculadamente branca e aquela gravata de tricô preto. Ao seu lado, está sentado Nílton Bastos, uma das maiores figuras do Café. Ele usa chapéu de feltro marrom, combinando com o seu terno também marrom e sapatos da mesma cor.
O que estarão dizendo neste justo momento? Impossível reproduzir, porque, como disse acima, a minha presença significava nada. E, depois, quem sou eu para aproximar-me assim, sem mais nem menos, dos reis do samba? Limitava-me à contemplação muda e muito satisfeito ficava cada vez que um olhar deles pousava sobre a minha insignificante figura. Mesmo sem saber o que conversavam, eu podia adivinhar. Havia de ser sobre música e, essencialmente, samba. Não era possível que dois grandes daqueles conversassem sobre coisas chatas, como, por exemplo, a sucessão presidencial, a reforma do ministério, o custo de vida e outros assuntos mais bestas ainda.
Eles deviam estar falando de samba! Daquele samba que o Brasil inteiro cantava. Daquele samba que, assim que ficava pronto, escorria pela garganta de Francisco Alves, pela garganta de Mário Reis. Daquele samba, como igual já ninguém sabe fazer, nem eu, que procurei aprender com eles. Nem Bide, que acabou por perder a fórmula. Talvez, naquele instante, eles estivessem dando os últimos retoques no Se Você Jurar. Talvez estivessem arranjando uma rima melhor para a palavra saudade. Talvez estivessem estudando um plano para atacar de frente o último sucesso de Cartola, que era o rei da Mangueira.
E eu ali, firme, procurando disfarçar a minha curiosidade, aguardando o momento em que os dedos ágeis e cheios de ritmo dos dois mestres começassem a tamborilar sobre o mármore da mesa. Às vezes, a espera era inútil. Na maior parte das vezes, eu era recompensado, e ali ficava esquecido da tarde, do estômago, das coisas, ouvindo melodias que mais tarde tentei compor iguais, mas, qual o quê! Cadê talento? Cadê bossa? Cadê aquele toque de genialidade tão necessário? Mesmo assim, aprendi muita coisa nas portas do Café do Compadre.
Aprendi, por exemplo, qual a diferença entre o bom, o puro samba, e o mal, o falso samba. Conheci Ismael, conheci Nílton, Bide, Rubem, o inigualável Edgar, Aurélio, Brancura, Baiaco, e tantos outros que sem querer torceram o meu destino, o destino de um rapaz que fatalmente terminaria chefe de seção da Light e que hoje não passa de um sambista, um sambista que nunca conseguiu um lugar nas mesas do Café do Compadre".

Por Evaldo Rui (1913-1954)
Evaldo Rui, radialista, parceiro de Custódio Mesquita em várias canções (Saia do meu caminho, por exemplo) teve com "Nega maluca" (esta em parceria com Fernando Lobo) o seu maior sucesso. Terminou seus dias como funcionário da Light. Suicidou-se em 1954, aos 41 anos, deixando um bilhete de despedida para a sua grande paixão, a cantora Elizeth Cardoso. Deixou esta crônica sobre os bambas do Estácio que considero brilhante. Talvez nem seja tão brilhante assim. Mas dá pra imaginar esse funcionário público não se vendo no meio dos bambas?
O cara era e não acreditava ser.
Vai saber, sobrevivemos a mais um carnaval.
Beijus

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