A morte sempre cai bem
- Silêncio na sala! Está iniciado este julgamento! Senhor Anjo da Guarda tem a palavra.
- Excelentíssimo, Altíssimo e Omnipotente Deus Todo Poderoso...
- Chega de enrolação! Prossiga com os fatos.
- Hum hum, perdão, perdão. A minha protegida hoje aqui presente nesta audiência teve os seus pecadilhos ao longo da vida, sim Senhor. No entanto foi sempre uma boa cristã, generosa, amiga de crianças, velhinhos e animais. Foi sempre amiga do seu amigo, e muitas vezes conseguiu mesmo não ser inimiga do seu inimigo. Discreta e decente, uma moça que deve com certeza ascender aos céus.
- Hum... Diabo de acusação, faça-me um breve resumo. Pode deixar de fora as coisas menores, como dizer palavrões ou roubar seu colega de berço, porque com o último julgado estive aqui por três meses por conta disso.
- Assim sendo, e já que me corta o discurso de forma tão vil...
- Não sejas melodramático, eu sou Deus, não posso ser vil.
- Tens razão, sim Senhor. Era para ver se passava. Bom, mas em traços gerais, e cingindo-me aos 7 pecados mortais, que só aí temos motivos mais que suficientes para a condenação eterna no fogo dos infernos...
- Olha o melodrama!
- Desculpa... mas sabes que nestas coisas eu me entusiasmo. Enfim, sendo sistemático:
IRA – 3457 fúrias graves contra o irmão e mais de 5000 dirigidas à irmã.
INVEJA – 345 olhares mortíferos para mulheres esplendorosas e mais de um milhão para outras com malas e sapatos exclusivos.
SOBERBA – 253 vezes que andou de nariz empinado por não dar o braço a torcer diante de uma discussão. E nem vou abordar as vezes que fincou o pé.
AVAREZA – 8953 dias passados a contar os tostões da conta bancária, consoante a idade em que se deu o delito. Quantidade de vezes que deu esmola bem inferior à média de um cristão comum.
GULA – Se quiser uma demonstração prática tenho lá fora uma torta de chocolate.
- Não é preciso, eu consigo imaginar. Além disso também já estou com uma fome diabólica. O almoço já vai há muito tempo. Prossegue.
- PREGUIÇA – tenho aqui um dossiê com informação detalhada de todas as ocorrências de preguicite aguda, com mais de 2 milhões de páginas...
- Poupa-nos a leitura. Eu sou Deus, sei tudo o que está lá escrito.
- Finalmente, e pior de todos, temos a LUXÚRIA. Quer a descrição completa das fantasias da nossa julgada?
- Não vale a pena. Mesmo sendo Deus consegui corar quando li o processo. Bem, assim sendo, e como este é um caso bicudo, vou fazer uma pausa para deliberar. Até lá a julgada fica retida no Purgatório. Reunimos de novo daqui a um século.
- Menos mal! Pensei que a Luxúria lhe valesse uma condenação imediata! A propósito... irá me ensinar aquela do...
- ANJO!!!
- Oh! Excelentíssimo e Om...nipotente Deus Todo Poderoso... tens ouvidos de tísico meu Altíssimo...
Esculturas de Antony Gormley
No purgatório por meio século... só porque tinha sido humana demais? Talvez depois desse tempo conseguisse enxergar com clareza os seus erros. E se tivesse acreditado em outro palestrante, não estaria ali! Teria morrido e vivido um monte de vezes. Mas será que era necessário morrer para viver tantas vezes, ou seria o contrário, viver para morrer tantas vezes? Morre-se um pouquinho a cada dia, já ouvira dizer. Ainda não sabia, só iria tomar consciência dos ciclos da vida depois de passado alguns longos anos.
Mas com certeza que com os filhos compensaria os erros cometidos pela falta, ou foram pelos excessos? Já não tinha certeza de nada! A essa altura da morte ter que pensar no que pudesse ter feito de certo e de errado em vida. Que descanse em paz! Não existe mais? Teria que fazer diferente dos humanos, agora morta era coitadinha
(Olha lá embaixo tanta gente chorando...).
Ah, os filhos! Porque deixou que ficassem influenciados por frivolidades? Tanta educação torta! Divertir-se para quê? O fim sempre seria aquele! Como fazer agora para explicar aos filhos que, apesar do que dizia a Disney, Hércules não era filho de Zeus e de Hera, mas de Zeus e Alcmena; que Zeus de fato enganou a mulher e a própria Alcmena, assumindo a forma de Anfitrião; que Alcmena e Anfitrião não eram o casal de velhotes que encontrou e adotou Hércules quando ele caiu do céu; que foi Hera, e não Hades, quem enviou as serpentes a Hércules; que Hades, retratado no filme como uma espécie de demônio dos infernos, não era propriamente um ente maligno, e que, sobretudo, não era inimigo de Zeus; Que Hércules era ruim e teria matado a mulher e os filhos.
Se vivesse novamente, aproveitaria o tempo com coisas simples, descomplicaria a vida, diria somente a verdade, sem fantasias, sem rodeiros, sem informações erradas, sem superficialidades. Assim como fizera seus pais e que não lhe deixaram passar por crise nenhuma até chegar nesse purgatório. Mas pouparia seus descendentes.
Agora estava ali a fazer exames de consciência.
Porque agora o seu mundo só poderia ser visto com os olhos dos outros.
Opa! que é isso que estão dizendo?
* Este texto foi publicado a primeira vez a quatro anos e resolvi trazer novamente ao "Luz" porque cargas d'água o "Luz" foi acessado demais por conta da morte do Fausto Wolff e também porque a Marília Alvarenga falou sobre morte, que me fez perder em pensamentos pós morten. Besteira, não é? O que importa, o que vão dizer depois? Como disse Jimi Hendrix:
"Quem morre está feito pro resto da vida"
Boa semana!
Beijus
- Excelentíssimo, Altíssimo e Omnipotente Deus Todo Poderoso...
- Chega de enrolação! Prossiga com os fatos.
- Hum hum, perdão, perdão. A minha protegida hoje aqui presente nesta audiência teve os seus pecadilhos ao longo da vida, sim Senhor. No entanto foi sempre uma boa cristã, generosa, amiga de crianças, velhinhos e animais. Foi sempre amiga do seu amigo, e muitas vezes conseguiu mesmo não ser inimiga do seu inimigo. Discreta e decente, uma moça que deve com certeza ascender aos céus.
- Hum... Diabo de acusação, faça-me um breve resumo. Pode deixar de fora as coisas menores, como dizer palavrões ou roubar seu colega de berço, porque com o último julgado estive aqui por três meses por conta disso.
- Assim sendo, e já que me corta o discurso de forma tão vil...
- Não sejas melodramático, eu sou Deus, não posso ser vil.
- Tens razão, sim Senhor. Era para ver se passava. Bom, mas em traços gerais, e cingindo-me aos 7 pecados mortais, que só aí temos motivos mais que suficientes para a condenação eterna no fogo dos infernos...
- Olha o melodrama!
- Desculpa... mas sabes que nestas coisas eu me entusiasmo. Enfim, sendo sistemático:
IRA – 3457 fúrias graves contra o irmão e mais de 5000 dirigidas à irmã.
INVEJA – 345 olhares mortíferos para mulheres esplendorosas e mais de um milhão para outras com malas e sapatos exclusivos.
SOBERBA – 253 vezes que andou de nariz empinado por não dar o braço a torcer diante de uma discussão. E nem vou abordar as vezes que fincou o pé.
AVAREZA – 8953 dias passados a contar os tostões da conta bancária, consoante a idade em que se deu o delito. Quantidade de vezes que deu esmola bem inferior à média de um cristão comum.
GULA – Se quiser uma demonstração prática tenho lá fora uma torta de chocolate.
- Não é preciso, eu consigo imaginar. Além disso também já estou com uma fome diabólica. O almoço já vai há muito tempo. Prossegue.
- PREGUIÇA – tenho aqui um dossiê com informação detalhada de todas as ocorrências de preguicite aguda, com mais de 2 milhões de páginas...
- Poupa-nos a leitura. Eu sou Deus, sei tudo o que está lá escrito.
- Finalmente, e pior de todos, temos a LUXÚRIA. Quer a descrição completa das fantasias da nossa julgada?
- Não vale a pena. Mesmo sendo Deus consegui corar quando li o processo. Bem, assim sendo, e como este é um caso bicudo, vou fazer uma pausa para deliberar. Até lá a julgada fica retida no Purgatório. Reunimos de novo daqui a um século.
- Menos mal! Pensei que a Luxúria lhe valesse uma condenação imediata! A propósito... irá me ensinar aquela do...
- ANJO!!!
- Oh! Excelentíssimo e Om...nipotente Deus Todo Poderoso... tens ouvidos de tísico meu Altíssimo...
Esculturas de Antony Gormley
No purgatório por meio século... só porque tinha sido humana demais? Talvez depois desse tempo conseguisse enxergar com clareza os seus erros. E se tivesse acreditado em outro palestrante, não estaria ali! Teria morrido e vivido um monte de vezes. Mas será que era necessário morrer para viver tantas vezes, ou seria o contrário, viver para morrer tantas vezes? Morre-se um pouquinho a cada dia, já ouvira dizer. Ainda não sabia, só iria tomar consciência dos ciclos da vida depois de passado alguns longos anos.
Mas com certeza que com os filhos compensaria os erros cometidos pela falta, ou foram pelos excessos? Já não tinha certeza de nada! A essa altura da morte ter que pensar no que pudesse ter feito de certo e de errado em vida. Que descanse em paz! Não existe mais? Teria que fazer diferente dos humanos, agora morta era coitadinha
(Olha lá embaixo tanta gente chorando...).
Ah, os filhos! Porque deixou que ficassem influenciados por frivolidades? Tanta educação torta! Divertir-se para quê? O fim sempre seria aquele! Como fazer agora para explicar aos filhos que, apesar do que dizia a Disney, Hércules não era filho de Zeus e de Hera, mas de Zeus e Alcmena; que Zeus de fato enganou a mulher e a própria Alcmena, assumindo a forma de Anfitrião; que Alcmena e Anfitrião não eram o casal de velhotes que encontrou e adotou Hércules quando ele caiu do céu; que foi Hera, e não Hades, quem enviou as serpentes a Hércules; que Hades, retratado no filme como uma espécie de demônio dos infernos, não era propriamente um ente maligno, e que, sobretudo, não era inimigo de Zeus; Que Hércules era ruim e teria matado a mulher e os filhos.
Se vivesse novamente, aproveitaria o tempo com coisas simples, descomplicaria a vida, diria somente a verdade, sem fantasias, sem rodeiros, sem informações erradas, sem superficialidades. Assim como fizera seus pais e que não lhe deixaram passar por crise nenhuma até chegar nesse purgatório. Mas pouparia seus descendentes.
Agora estava ali a fazer exames de consciência.
Porque agora o seu mundo só poderia ser visto com os olhos dos outros.
Opa! que é isso que estão dizendo?
* Este texto foi publicado a primeira vez a quatro anos e resolvi trazer novamente ao "Luz" porque cargas d'água o "Luz" foi acessado demais por conta da morte do Fausto Wolff e também porque a Marília Alvarenga falou sobre morte, que me fez perder em pensamentos pós morten. Besteira, não é? O que importa, o que vão dizer depois? Como disse Jimi Hendrix:
"Quem morre está feito pro resto da vida"
Boa semana!
Beijus
Morrer será a última, a derradeira coisa que vai me acontecer ainda vivo, até lá, continuarei a viver sem pensar nela. Já entramos em acordo. Ela será paciente e eu diligente.
ResponderExcluirMuitos chegam no meus blogs pela busca de Peitões. A palavra esta inserida no texto da Blogagem coletiva sobre Amamentação.
Lembrou-me um personagem de HQ - Morte, um personagem criado por Neil Gaiman, é a irmã mais velha de Sonho, embora não seja o Perpétuo mais velho (Destino o é). Morte se encontra com cada mortal duas vezes em sua vida: no nascimento, e na morte. Ela está fadada a ser o último ser a existir.
ResponderExcluirUma vez a cada cem anos ela passa um dia como mortal ao fim do qual ela inevitavelmente morre, para ter melhor compreensão da sua missão.
Morte parece sempre ser o perpétuo mais otimista e bem humorado (exceto por Desejo, talvez) ao contrário de seu irmão mais novo, sempre mórbido e melancólico. Ela sempre se veste com roupas góticas e carrega um colar na forma de Ankh, ironicamente o símbolo egípcio da vida. Tem cabelos negros, e pele muito pálida (essa última é característica comum a todos os perpétuos).
Neil lidou com a morte como um personagem da vida para digavar sobre o assunto. Outros historiadores ou literarios a utilizaram de modo unico em suas visões. O que acontece depois?
Ninguem, ainda, arrisca tanto. :)
Beijos, beijos, beijos, beijos
<3<3<3<3<3<3<3<3<3<3<3<3<3<3<3<3
<3<3<3<3<3<3<3<3<3<3<3<3<3<3<3<3
<3<3<3<3<3<3<3<3<3<3<3<3<3<3<3<3
<3<3<3<3<3<3<3<3<3<3<3<3<3<3<3<3
Foi a primeira vez que vi o texto, mas o li, e curiosamente não me fez pensar mais na morte do que algum dia tenha pensado.
ResponderExcluirUm abraço e uma boa semana
Interessante!
ResponderExcluirO texto é muito bom. Me fez lembrar um escritor querido e falecido que ironizava a morte. Lembro que ele a tratava como um descanso.
Ele dizia assim quando estava à noite, em frente a TV assistindo seu filmes preferidos e sua mulher o chamava para deitar:
"Pra que ir dormir agora querida, se eu vou ter uma 'eternidade' para descansar..."
Abraços, querida Luma!
Olá Luma, sempre passo aqui pelo Luz, mas acho que é a primeira vez que comento... Otimo Texto! Republicar de vez em quando faz bem
ResponderExcluirConfesso que não lido muito bem com essa ideia de finitude. Tenho a mania de me preocupar com questões que estão alem do meu alcance rs. Mas como será a ultima coisa que me acontecerá na vida, prefiro ignora-la.
Interessante o "se preocupar com oque vão pensar da gente, com oque deixamos para os outros"; Se existe purgatório e eu tiver que passar algum tempo por lá, enlouquecerei; Nunca somos tão bons como gostariamos!
"GULA – Se quiser uma demonstração prática tenho lá fora uma torta de chocolate." rs
São todos pecadinhos que até os mais santos cometem...
Beijos!
Ainda a pouco foi enterrados 4 pessoas queridas, mortas num acidente na Fernão Dias à caminho de BH. O que tem à ver com o texto é que mediante o comportamentos destes em vida, eles entraram diretos ao PARAISO. Realmente só em vida determinamos nosso pós mortis. Pecamos a todo momento, e ainda bem que podemos nos valer mediante o sacrifício de Cristo na cruz. Só que sua vida eterna defende se em vida, não existenem purgatório. Segue se desta para o HADES ou o PARAISO. Vale a pena garantir o passaporte para a vida eterna,com o dono dela. O texto desperta nós meros mortais para a outra vida e que devemos melhorar nosso pensar, falar e agir. Vou redobrar meus cuidados com o pecado da gula, já que com ele não se padece só na outra vida, mas se padece nesta com a alma super empanada em banhas. rs...
ResponderExcluirSalve, mana amada (e sumida!): parabéns pelo texto e que tenhamos uma morte auspiciosa, com direito à seguinte defesa "Pecou por amar demais... Que lhe seja concedido o perdão!" Beijo grande!
ResponderExcluirComo diz uma senhora das revistas cor-de-rosa aqui em Portugal, "Estar morto é o contrário de estar vivo." E pronto.
ResponderExcluirAs esculturas de Gormley entrando no mar são um espanto.
E as esculturas? Estarão mortas?
Ah! A Morte! Pior do que a morte como fato em si, são aqueles que estão mortos(em vida)e não sabem disso!
ResponderExcluirSuas postagens são deliberadamente reflexivas, como a frase final:
"Quem morre está feito pro resto da vida"
Beijos!