Vida de Escritor

os passarinhos
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Cláudio Brites, inicia o texto "Vida de Escritor", assim:

"Quem nunca teve a visão romântica do escritor by século XXI? Que fica em frente do laptop em um cenário paradisíaco, e isolado, escrevendo seus romances entre uma tragada e outra enquanto arrecada milhões de best-sellers já lançados, mesmo que tenha sido só um..."

Sim, eu imagino como deve ser dura a missão de suceder o século dos romances...

É muito difícil - a nossa posição, depois de um final de século tão amaldiçoado e de uma forma ou de outra, mítico. - Compreender o que se pensava a cem anos atrás sobre o futuro, deve ser mais difícil do que compreender a vida do escritor de antigamente.

Faz sentido que, no terreno da literatura, aquele habitante do epílogo oitocentista, com seu pincenê, fosse um sujeito metido à besta. Vá lá que o século XX estivesse fadado a ser uma época de maravilhas tecnológicas, como previa Júlio Verne. Mas seriam as mentes do futuro capazes de criar portentos da imaginação como "Guerra e Paz", de Léon Tolstói, ou "A Comédia Humana", de Honoré de Balzac, com sua mistura quase impossível de painel histórico e acuidade psicológica?

A arrogância do nosso personagem do século XX se justifica: O Século XIX tinha sido o século do romance. Os americanos exibiam Herman Melville, Mark Twain e Nathaniel Hawthorme; os britânicos, Jane Austen, Charles Dickens e Oscar Wilde; os franceses, além de Balzac, Gustave Flaubert e Émile Zola; os russos, além de Tolstói, Fiodor Dostoiévski e Ivan Turgueniev; os portugueses, Eça de Queirós; os brasileiros, Machado de Assis. Se os oitocentos tinham começado sob o signo da poesia, com Lord Byron cristalizando a dicção e o grande personagem do romantismo, sob a marca do intimismo articulado com o social - mistura mais adequada à prosa - que estavam terminando.

O florescimento romanesco em todo o Ocidente se deu em vários planos: estético, comercial e - coisa inédita - até comportamental. Ao levar uma pequena multidão de amantes infelizes ao suicídio com seu romance epistolar "Os Sentimentos do Jovem Werther", um dos pilares de fundação do romantismo, em 1774, o alemão Wolfgang Goethe antecipava uma época que veria a consagração do adjetivo "balzaquiana" e o substantivo "bovarismo" - neologismos literários e correntes.

Pode-se perguntar qual era a novidade. Sendo acessível a um público maior - por ser menos culta - a prosa de ficção não tinha ocupado esse posto desde sempre? Não. Moldar consciências costumava ser atributo da poesia. Em versos se exprimiram os fundadores das versões modernas de nossas línguas: Dante, Camões, Shakespeare. Talvez por se confundir, desde o início, com fórmulas ritualísticas e religiosas, a poesia guardou essa reverberação que a tornava veículo perfeito das questões elevadas, do tipo que se aprende "de cor" (ou de coração, o que é a mesma coisa) como forma de perpetuação de conhecimentos históricos e preceitos morais.

Basta ver que a prosa de ficção custou a tomar forma, enquanto que a poesia nasceu pronta. Homero, que teria vivido no século XII antes de Cristo, segue sendo um ícone estético e um desafio para tradutores do mundo inteiro. A prosa inventiva não tem antepassados tão remotos. Surge no momento em que o herói épico e trágico, uma criatura próxima dos deuses (nem que fosse para brigar com eles), dá lugar ao anti-herói demasiado humano, figura prosaica e imperfeita às voltas com questões terrenas. "Satiricon", de Petrônio, do século I d.C., costuma ser citado como um marco da virada. No plano econômico-ideológico, diz-se que o romance surgiu para expressar uma nascente visão burguesa do mundo, em oposição ao aristocrático poema épico.

O passo seguinte, que dominaria a Idade Média, resgatou o épico e o injetou na prosa, agora no contexto das lutas cristãs contra os "infiéis". O romance de cavalaria criou, com suas peripécias mirabolantes, uma forte tradição na maioria dos países europeus, mas era visto como lixo ou, no máximo, passatempo: seus autores não gozavam do prestígio social dos poetas. Foi, porém, uma sátira à fórmula estereotipada de cavalaria que - segundo a maioria dos historiadores - fundou em 1605 o romance moderno: "Aventuras do engenhoso fidalgo D. Quixote de la Mancha", do espanhol Miguel de Cervantes.

(Faça-se uma pausa para a ressalva de que todo marco tem algo arbitrário. Em sua retrospectiva dos cem eventos que moldaram o segundo milênio, a revista americana "Life" escalou o livro de uma japonesa como o primeiro romance do mundo: "A História de Genji", de Murasaki Shikibu, de 1008. Certo. Em tempos politicamente corretos, não será surpresa se Shikibu for destronada em breve por algum Homem Neanderthal albino e gay. Mas é vazia essa competição por um pioneirismo que, de resto, não teve qualquer impacto na literatura ocidental, pela simples razão de que as pessoas que a escreveram não tomaram conhecimento dele. Fim da ressalva.)

Reelaborando a herança de Cervantes, o século XVIII começou a preparar o terreno para o iminente boom do romance: vieram Daniel Defoe com seu "Robinson Crusoé" e Voltaire com seu "Cândido", além do já citado Goethe. No entanto, foi só no século XIX que o gênero ganhou público de massa (através da coqueluche da serialização em jornais, os folhetins) e até uma consciência crítica de sua própria forma, como prova o narrador auto-irônico de Machado. Enquanto isto, a poesia ia sendo confinada ao âmbito lírico ou vista como o laboratório radical da língua, em que já não cabiam amplas visões do homem e da História. Faz sentido. Como memorizar e declamar o francês Stéphane Mallarmé?

O mais curioso é que nosso convencido personagem inicial, partidário da superioridade literária do século XIX, acaba tendo uma certa razão. Sua época fixou parâmetros que o Século XX, apesar de toda a sua inquietude, não conseguiu romper. Os poetas permaneceram pouco lidos e os ficcionistas foram os melhores tradutores do espírito do tempo, paparicados como tais - bajulação que foi além das décadas de 70 e 80, quando começou a ficar evidente o declínio do papel do escritor numa sociedade cada vez mais visual.

É claro que o vigésimo século da era cristã aprontou. Acompanhamos James Joyce reinventando a língua inglesa e Marcel Proust montando um ambicioso modelo de percepção humana do tempo; Franz Kafka redefinindo o fantástico e Virgínia Wolf transformando o próprio pensamento caótico e condutor de tramas vagas.

No entanto, seculocentrismos à parte, não foi preciso revogar nenhuma das leis básicas dos oitocentos, para que tais autores coubessem na categoria de romancistas. Os poucos nomes que tentaram destruir essas leis, como Alain Robbe-Grillet e seu noveau roman, só destruíram a paciência do leitor. Nosso personagem de pincenê gostaria de saber que o desafio fica de herança para o século XXI.

Os escritores evoluem a medida que o trabalho literário faz do leitor não apenas um consumidor mas também um produtor de textos. Ele é educado ao ler e sua conduta evolui a medida que seu pensamento evolui, numa educação cerebral para também produzir. Todos são produtores de textos em potencial, a medida que alimentamos nossas fontes de inspiração. Como escreveu Barthes:

"Um divórcio impiedoso que a instituição literária mantém entre o fabricante e o usuário do texto, seu proprietário e seu cliente, seu autor e seu leitor."
(Barthes, 1992, pág. 38).

"Ler é desejar a obra, é pretender ser a obra"

O leitor traça o destino do escritor.

Este texto é uma contribuição para a blogagem "Vida de Escritor" promovida pelo blogue "Fio de Ariadne", editado por Vanessa.

9 comentários :

  1. Oi Luma,
    Tb estou nessa blogagem mas ainda não postei meu texto...
    Vou falar do Sabino mesmo...

    A tendência é de que o Escritor evolua mesmo... Ficar estagnado num mesmo tipo de escrita ou texto literário deixa a desejar, pois a leitura se torna chata e previsível!!!

    bjão

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  2. Poxa....gosteii muito da postagem, principalmente esse trecho:

    Ler é pretender ser a obra.


    Perfeito.


    abraços

    Hugo

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  3. Pôooooxa, Luma, desta vez você foi fundo.... Meu texto ficou rasinho, rasinho, rs Também acho que a participação do leitor é fundamental na realização do texto. Beijo.

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  4. Oi, Luma
    Somos todos produtores e consumidores de cultura, ainda mais em tempos de internet, né? A História caminha, e nós fazemos a História, um dos motivos que não nos permite ficar de telespectador da vida!!!!

    Beijos, Marcia

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  5. Ola!
    Vim lhe dizer que a postagem já está lá.
    Gostei do seu texto estou participando da blogagem coletiva com o meu blog: Uma Interação de amigos, agradece a sua visita.
    http://sandrarandrade7.blogspot.com
    Com carinho
    Sandra

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  6. Anônimo20:59

    Oi Luma.

    Eu adoro ler.
    Já para escrever, acho que eu não levo muito jeito ...

    Parabéns a todos os escritores pois sem eles o que eu leria ?

    Bjs,
    Elvira

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  7. Luma,
    Que texto brilhante! Vivi o texto do início ao fim...
    Fui criando imagens, rebuscando lembranças...
    E senti como se o peso de séculos pousasse sobre minhas palavras.
    Parabéns por mais um texto genial!

    Ah sim! Saudades de você, viu! =)

    Beijo.

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  8. Sabe que eu estou de acordo, leio muito tudo e meu sonho é escrever um livro que a minha preguiça não me permite começar...mas até já escrevi um como ghostwriter ;).
    O Marco Luque é ator, ótimo comediante e apresenta o CQC.
    Beijos amore.

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  9. Passando rapidinho só para convidá-la a conhecer o novo layout do Mundinho e de quebra participar da Promoção.
    Estou te esperando.
    Bjs

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